O estudo do consumo – englobando os consumidores, seus comportamentos e as relações estabelecidas entre humanos e objetos – é algo que move diversos grupos de pesquisa tanto em universidades quanto em institutos de pesquisa do mercado: hábitos de consumo de indivíduos e de grupos, rotina do processo do consumo, desejos e necessidades, processos decisórios entre marcas e produtos, quando e porquês da compra são alguns exemplos das principais perguntas que guiam as pesquisadoras ou pesquisadores a tentar compreender um pouco mais desse complexo sistema. Tão importante é essa disciplina que não é de se estranhar que já era possível encontrar tópicos de estudo como sistemas de troca, esferas de troca, bens de prestígio em pesquisas antropológicas diversas desde as primeiras décadas do século XX – muito antes do consumo de massa existir, por exemplo (DUARTE, A. 2010).
“A ultrapassagem da oposição essencialista e simplista entre sociedades pré-industriais e industriais é uma mudança necessária para tornar possível conceber como pertinente o estudo das relações entre pessoas e coisas, independentemente do tipo de sociedade e do regime de produção existentes. Mauss (2001) conseguiu demonstrar como a troca ritualizada de presentes contribuía para a manutenção da solidariedade social nas sociedades pré-industriais; a antropologia do consumo poderá demonstrar como, numa qualquer sociedade, os objetos podem servir para criar e manter relações sociais, proceder à construção ativa de formas particulares de cultura, mediar valores fundamentais” (idem, 2010).
Assim, como qualquer sistema complexo, o consumo não é algo estático: a todo instante tem mudado e se adaptado a medida – e na velocidade – que a sociedade também tem se transformado. Obviamente, portanto, não é de se estranhar o quanto central tem sido o estudo dos impactos e transformações que estas novas tecnologias têm trazido à nossa sociedade de consumo contemporânea.
Em seu artigo mais recente publicado, Robert Kozinets (professor titular do Departamento de Comunicação e Jornalismo da Universidade do Sul da Califórnia – EUA – e fundador da terminologia Netnografia) em parceria com Eric Anrnould (professor titular do Departamento de Marketing da Universidade de Aalto – Finlândia) debate sobre a importância de se estudar esse novo consumidor, que se forja em um ambiente altamente tecnológico e conectado. “Estamos interessados ??nos consumidores e na etnografia do consumidor na atualidade. Os consumidores, as comunicações e o consumo são todos varridos em uma transmissão antropocêntrica e escultural de vários tipos, mas particularmente em nosso tempo atual no que se refere ao tecnológico. Pode ser que o rápido ritmo de mudança e consumo tecnológico defina nossos tempos atuais melhor do que qualquer outro, exceto talvez a condição de crise perpétua. Os consumidores, mais do que nunca, se estendem em redes de dados e informações e são incorporados em redes supra individuais. As marcas assumem novos papéis nas vidas de fantasia e vocabulário de mídia de famílias e indivíduos” (KOZINETS, R; ARNOULD, E., 2016).
Assim, os autores nos convidam a realizar estudos nessa área, trazendo novas respostas a esses novos comportamentos de consumo. Porém, apesar de incentivar os estudos nesse campo, os autores fazem questão de nos chamar a atenção para um ponto muito importante: há uma grande chance de que estudos sobre esses novos consumidores sejam simplistas e rasos já que os pesquisadores se encontram inseridos totalmente dentro deste universo (sendo “nativos digitais”), fazendo com que o comportamento observado pareça óbvio. Muito ao contrário, os autores colocam a complexidade de desvendar esse novo sistema simbólico de consumo que não tem nada de óbvio: quem ou o que é esse novo consumidor cyborg[1] que reivindica novas formas de extração, circulação, rituais e rotinas? Quais são as novas tipologias de representação e de criação de identidades, já que esses novos sujeitos consumidores depositam sua atenção e se constroem cotidianamente entre televisões, Facebook, aplicativos, smartphones? (idem, 2016).
Para Kozinets, a etnografia se torna, portanto, um mecanismo excelente para garantir visões não superficiais, pois é o que garante a análise e o entendimento complexo sobre essas novas relações e estruturas. Porém, assim como rejeita as soluções típicas e simplistas, o autor nos coloca o desafio de se fazer a etnografia nesse momento, pois estamos entrando em uma nova era na pesquisa relacionada à Internet.
“Na verdade, pode ser que cada vez mais as ‘coisas’ mais credíveis, mais legítimas, mais desejáveis ??e mais sedutoras são aquelas que são criadas para existência. O sistema é interessante, o que torna tudo isso possível. Assim também são os hábitos, as rotinas, os pensamentos e as emoções que conduzem o indivíduo, que o impulsionam através das rotinas do teclado e do smartphone em domínios de significância e satisfação. Como já discutimos, esses elementos podem ser vistos como ameaças à compreensão etnográfica. Escolhemos, em vez disso, vê-los como oportunidades para uma compreensão sintética, uma antropologia de cyborgs, por cyborgs, para cyborgs. Mapear o terreno de uma etnografia orientada para o mercado de ciborgs é praticamente impossível, mas também de vital importância. O olhar etnográfico amplia seu alcance para o ambiente mais íntimo e mais público dos ambientes. E, talvez, mais importante, relaxa uma concepção estreita do consumidor como aquela que compra passivamente entre uma variedade de ofertas de mercado. Quem é esse consumidor cyborg, nós perguntamos? O consumidor contemporâneo é, naturalmente, um cyborg. Ele é, naturalmente, parte de uma nova rede – em rede. Talvez até mesmo algo a caminho de se – uma nova forma de espécie, um pós-humano. Talvez seja bobo falar de tais coisas porque já são tão óbvias. E, no entanto, ainda vale a pena mencionar que este consumidor cyborg é aquele que intervém ativamente e coletivamente em quase e qualquer ponto de uma determinada cadeia, criando novos relacionamentos e identidades e, assim, torna-se consumidor / designer; consumidor / desenvolvedor; consumidor / empresário; consumidor / fabricante; consumidor / distribuidor, e assim por diante. No entanto, sempre o cyborg. Fazendo dinheiro. Projetando produtos. Desenvolvendo softwares. Vendendo e sendo vendido por seus seguidores, amigos e familiares” (ibdem, 2016)
Bibliografia
Alice Duarte, « A antropologia e o estudo do consumo: revisão crítica das suas relações e possibilidades », Etnográfica [Online], vol. 14 (2) | 2010, Online desde 17 Outubro 2011, consultado em 21 Novembro 2017. URL : http://etnografica.revues.org/329 ; DOI : 10.4000/etnografica.329
Kozinets, Robert V. and Eric J. Arnould (forthcoming), “Ruminations on the Current State of Consumer Ethnography” in Bente Halkier and Margit Keller, eds., Routledge Handbook on Consumption, London: Routledge.
[1] Nome designado pelos autores a estes novos consumidores