Numa era pandêmica em que a casa é lar, refúgio e cativeiro, a sétima arte tem sido o alento de muitos, nos oferecendo doses necessárias de escapismo e até de nostalgia de um tempo em que máscaras se restringiam à ficções científicas pós-apocalípticas. Não à toa, a Netflix nome que tem se tornado metonímia para streamings em geral , quebrou seus próprios recordes de audiência com suas séries A Máfia dos Tigres, O Gambito da Rainha e Bridgerton, todas estreadas durante o período de isolamento social. Contudo, nem sempre tivemos essa confiança na força da indústria audiovisual durante a pandemia. Nos primeiros meses desse cenário, com as notícias de fechamentos das salas de cinema e paralisação de gravações até em grandes estúdios, muito se especulou que a covid-19 seria a última pá de cal na cova das premiações de cinema hollywoodiano, em especial o Oscar, que vem sofrendo uma constante queda no número de espectadores

Ainda é cedo para fazer qualquer afirmação sobre a audiência da edição deste ano, mas já é possível especular, a partir da recepção em redes sociais dos anúncios dos indicados à 93ª cerimônia, que a expectativa é melhor do que se supunha há um ano. Vários termos relacionados à premiação entraram nos trending topics do Twitter, como posts de artistas e estúdios comemorando suas nomeações, e contabilizam milhares de curtidas. Poucos foram aqueles que acessaram a internet no último mês e não viram nenhuma notícia sobre o Oscar. Coletamos parte desses dados, mais especificamente tweets publicados em portugês em 15 de março de 2021, dia do anúncio dos indicados, contendo as hashtags #Oscars, #Oscars2021 ou #OscarNoms, bem como as junções dos termos “Oscar” e “indicado”/“indicada”.

Os resultados foram impressionantes 6.431 posts transformados na rede semântica que analisamos a seguir. Para isso, os dados textuais coletados foram processados no WORDij, desenvolvido pelo pesquisador James Danowski para a criação de redes de palavras a partir de paridades e correlações entre elas, encontrando linhas discursivas presentes no texto com um grau de precisão e detalhamento que outras abordagens da análise de conteúdo não permitem. A janela de co-ocorrência de 3 termos anteriores e posteriores foi mantida, seguindo a recomendação do próprio Danowski, e os pares que apareceram menos de 4 vezes foram descartados. O arquivo gerado foi trabalhado no software Gephi, no qual utilizamos os layouts OpenOrd e Force Atlas 2.

O objetivo desse esforço foi entender como o internauta brasileiro compreende o maior prêmio do entretenimento da cultura pop mainstream do mundo e suas impressões sobre o cinema no ano de 2020. Entretanto, deve-se considerar que, ainda que estejamos falando de “mundo”, sabemos que o universo da cerimônia em questão se restringe quase que exclusivamente aos países anglófonos (com exceção óbvia ao prêmio de Melhor Filme Internacional, anteriormente chamado de Melhor Filme de Língua Estrangeira), sobretudo estadunidenses e de Hollywood. Assim, a análise das publicações de brasileiros também informa sobre nosso consumo transcultural de arte e entretenimento.

Este post é parte de uma série a ser complementada com a análise de tweets sobre a 93ª cerimônia dos prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que será realizada no dia 25 de abril de 2021.

Como podemos observar, cada uma das palavras do grafo é representada por um nó, e estes conectam-se entre si pelas arestas. Quanto maior o nó, maior o número de co-ocorrências do termo (nota-se que isso é diferente de maior frequência do termo individual); e quanto mais grossa a aresta, maior é a paridade entre os termos interligados o que também é identificado pela proximidade entre nós. As palavras presentes no grafo serão grifadas aqui entre aspas.

Os nós mais centrais são aqueles que derivam o maior número de arestas (ou seja, fazem mais paridades com termos diferentes). Na nossa rede, essas palavras são facilmente identificadas: “melhor” e “filme”. Igualmente fácil é entender o motivo: a primeira corresponde à palavra que inicia todas as categorias do Oscar (Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Adaptado…); enquanto a segunda é central para qualquer discussão envolvendo cinema. 

“Melhor” centraliza também o cluster (agrupamento entre termos mais interconectados baseados em cálculos de modularidade, identificados pelas diferentes cores) laranja, dando conta da parte da rede relacionada às “categorias”, como previsto. Outros nós encontrados neste grupo são os que complementam os nomes de quase todas as categorias (“ator”, “atriz”, “coadjuvante”, “fotografia”, “design” de “produção”, “roteiro” “original” e “adaptado”, “figurino”etc.), sem esquecer de “indicação”, “nomeado”, “prêmio”, “estatueta”. Os nós “ator” e “atriz” fazem ligações, ainda, com os nomes dos indicados em suas respectivas categorias de ator principal ou “coadjuvante”.

A partir daí, começamos a ter nossos primeiros insights sobre as principais temáticas presentes nas discussões. “Chadwick Boseman”, “Riz Ahmed” e “Steven Yeun” possuem ligações entre si, ao passo que se distanciam de “Anthony Hopkins” e “Gary Oldman”, demais indicados na categoria Melhor Ator. Boseman, Ahmed e Yeun são atores não brancos¹, respectivamente “negro”, “mulçumano” e “asiático” (ou ainda “asiáticoamericano”). A pouca representatividade é uma constante problemática quando o assunto é Oscar, especialmente após o movimento #Oscarsowhite de 2015. A presença de diferentes etnias de fato chamou atenção. Os nós correspondentes a Ahmed, Yeun e suas respectivas etnias também se ligam a “primeiro”, explicado pelo fato de ser a estreia de atores de ascendências muçulmana e asiática na categoria (ainda que Ahmed seja de origem britânica). Boseman é também relacionado aos termos “indicação” e “póstuma” e os nós “eterno”, “Pantera” e “Negra” formam uma (emocionante) correlação.

Uma preocupação semelhante foi vista nas discussões sobre as categorias de “atriz”. O nó “primeira” tem destaque no agrupamento e mantém uma forte ligação com “vez”. Dessa união, podemos perceber menções à “primeira” “vez” na “história” em que “duas” “mulheres” “concorrem” ao “prêmio” de “direção” num mesmo ano (“Emerald Fennell” e “Chloe Zhao”); à primeira “diretora” não branca à concorrer em sua categoria (Zhao); à primeira atriz “sul coreana” a disputar o prêmio (“Youn Yuh-jung”); ou ainda ao “recorde” de “Viola Davis”, que se “torna” a primeira mulher “negra” a “receber” “quatro” indicações na história.

Para além da questão de representatividade, é bastante interessante notar que enquanto atrizes não tão cotadas para terem seus nomes lidos no envelope como “Andra Day” e “Vanessa Kirby” (ou mesmo a lendária “Meryl Streep”, que sequer está indicada) podem ser encontradas na rede, a veterana e já ganhadora de Oscar Frances McDormand, apontada como favorita no início da temporada de premiações, não estabeleceu paridades o suficiente para aparecer no grafo. Já “Glenn Close”, outra veterana, não apenas aparece, como tem apontada a contradição de ser indicada pelo mesmo papel ao Oscar e ao “Framboesa de Ouro”.

Já no cluster azul marinho, centralizado por “filme”, chama atenção uma aglomeração de palavras denotando que boa parte dos usuários percebeu que “ainda” “não” assistiu (“assisti”)/conhece (“conheço”) “nenhum” ou “quase” nenhum dos “filmes” produzidos “ano” “passado”, talvez confirmando parte da teoria sobre a dificuldade causada pela pandemia. Todavia, também fica claro um interesse em correr atrás desse prejuízo, com articulações entre palavras como “quero”, “preciso”, “vontade”, “ver”, “lista”, “completa” “tudo”, “todos”, “vamos”, “fazer”, “começar”, “maratona” e ainda perguntas sobre “onde” (em qual plataforma) “assistir”. Como possíveis respostas, temos streamings como “Apple” “tv” (ligada a “Wolfwalkers”), “Telecine” (ligado a “Emma”) e “Netflix” (ligada a “Mank”, “The Trial of the Chicago Seven” e “A Voz Suprema do Blues”).

Outro nó que se sobressai ainda neste cluster é relativo a “Bacurau”. Os fãs lamentam (“triste”, “chorando”, “infelizmente”) o filme produzido no “Brasil” “não” ter “sido” indicado a “nada”/“nenhuma” “categoria” (nota: ele não concorria na categoria Filme Internacional, apenas nas gerais). Observa-se que, mesmo que o Oscar nunca tenha premiado qualquer produção brasileira, nem mesmo na categoria de Melhor Filme Internacional/de Língua Estrangeira, esse reconhecimento ainda é  um desejo do nosso público, levantando questões sobre a importância que damos à validação de países hegemônicos sobre nossa cultura nacional. Outros esnobados que foram lembrados pelos usuários foram “Delroy Lindo”, na categoria de atuação, “Regina King” como diretora e “O Homem Invisível” para filme e roteiro.

O cluster verde limão é o que contém a maior parte dos títulos dos filmes presentes nas categorias principais (Filme, Ator, Atriz, Roteiro Original, Roteiro Adaptado e Direção). São eles: “Minari”, “Bela Vingança”/“Promising Young Woman”, O “Som do Silêncio”/“Sound of Metal” , “Uma Noite em Miami”/“One Night in Miami”, “Judas e o Messias Negro”/“Judas and the Black Messiah”, “Mank”, “A Voz Suprema do Blues”/ “Ma Rainey’s Black Bottom”, “Os Sete de Chicago”/“The Trial of the Chicago Seven”, “Pieces of a Woman”, O “Pai”/“The Father”, O “Tigre Branco”/“The White Tiger”, “News of the World” e “Nomadland” (único que faz conexão com “favorito”, seguindo as previsões da crítica especializada).

Os clusters lilás e azul escuro trazem nós relacionados às categorias de Melhor “Animação”, como os candidatos “Soul”, “Onward”/“Dois Irmãos” ambos da “Disney”/“Pixar” , A “Caminho” da “Lua”, “Wolfwalkers” e “Shaun”, o “Carneiro”, o Filme: a “Fazenda” “Contra-Ataca”; e “Efeitos” “Visuais”, com “Mulan”, “Love and Monsters”, O “Grande Ivan”, O “Céu da Meia-Noite” e “Tenet”.

Já os filmes indicados nas categorias menos prestigiadas se encontram nas bordas do grafo, tais quais Melhor “Documentário” de curta e longa-metragem (“Collective”, “Crip Camp”, “The Mole Agent”, “Collete”, “A Love Song for Latasha”; “Hunger Ward”), Curta-metragem (“If Anything Happens I Love You”) e Filme Internacional (“Another Round”/“Dinamarca”; “Better Days”/ “Hong Kong”, “Collective”/“Romênia”, “The Man Who Sold His Skin”/Tunísia e “Quo Vadis, Aida?”/Bósina e Herzegovina). Isso indica que, provavelmente, eles foram enumerados pelos perfis que cobriam o anúncio (feito por “Pryanka Chopra Jonas” e seu marido “Nick Jonas”), porém não foram tópicos comuns em debates e discussões. Assim como o próprio Oscar, a audiência brasileira aparenta manter a familiaridade e a preferência pelo conteúdo Hollywoodiano e anglófono.

Uma importante exceção à marginalidade dos filmes de menor categoria é “Love and Monsters”, indicado na categoria de “Efeitos Visuais”. A explicação está em seu “protagonista”, “Dylan O’brien”, ex-astro da série teen “Teen Wolf” e que possui uma grande e engajada base de fãs no Brasil. Junto ao nó do ator temos “orgulho”, “felicidade” e “merece”. Reforçamos que os indicados ao filme são Matt Sloan, Genevieve Camilleri, Matt Everitt e Brian Cox, responsáveis pelos efeitos do filme. Dylan não foi indicado.

Sabemos que os fandoms brasileiros são uma força a parte e a presença deles na rede não para por aí. Dois curiosos agrupamentos aparecem na extrema margem da rede, quase se descolando dela. Eles são formados por spams, ou seja, posts de usuários que aproveitaram a visibilidade dos termos ligados ao Oscar para impulsionar conteúdos que consideravam importantes sobre seus ídolos, mas que pouco tem a ver com o cinema, como as famosas fancams. O primeiro agrupamento é, principalmente, acerca dos “Grammys”, premiação de música que ocorreu um dia antes da coleta dos dados. O segundo, como não poderia deixar de ser quando falamos de Redes Sociais no início do ano no Brasil, é sobre o reality show “BBB” e seus participantes.

Percebemos que, ainda que o Oscar enfrente dificuldades para capturar o interesse do público atual, sua histórica relevância e seu mérito na  Indústria Cultural ainda se mostram vigentes. Ainda que não conheçam ou assistam às obras, demonstrando um potencial afastamento do universo da sétima arte em geral, os internautas brasileiros mantêm o interesse em acompanhar, comentar e discutir a premiação em particular, o que pode levantar importantes qu
estões sobre nossos hábitos culturais. Por enquanto, aguardemos para observar o que será dito no dia da cerimônia.

¹ Utilizamos o termo “não-branco” para nos referirmos a classificações raciais problematizadas no contexto estadunidense.