[O texto abaixo é uma colaboração de Nadja Santos, fundadora do projeto Zero.54, com apoio do prof. Tarcízio Silva]
Brasileiros crescem acreditando que o cabelo é moldura do rosto e, por diversos motivos que falaremos a seguir, mulheres e homens negros tentam se adaptar a cultura dos fios lisos e escorridos – ainda muito popular no Brasil. Nos últimos anos, muitos deles têm rompido com os padrões estéticos vigentes ao abandonarem o alisamento químico que os levam aos salões de beleza toda semana; mulheres em sua grande maioria. Este processo chamado de “Transição capilar” é muito mais do que moda ou tendência; o movimento se tornou uma necessidade em um momento peculiar na vida do brasileiro.
Pela primeira vez, 54% da população se considera negra e reafirmar a própria identidade se tornou essencial. Independente do tom de pele, a população negra começou por onde mais eles são identificados: o black power. O fenômeno está muito ligado também ao fato da população negra estar cada vez mais dentro das universidades, ambiente ainda majoritariamente branco e elitizado no Brasil.
Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge o costume entre os negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com freqüência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-estima. Bell Hooks, escritora, no ensaio “Alisando nosso cabelo”
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No #instamission283 que teve como tema a transição capilar, ficam claras as motivações e influenciadoras desta decisão tão importante. Em uma espécie de manifesto pró-afro, cada cabelo tem uma história muito semelhante de superação e empoderamento diante do apagamento das próprias raízes. Apesar de 70% das brasileiras terem cabelo cacheado e crespo, assumir os cachos se tornou um ato de coragem porque ao redor delas está uma pátria de alisadas. Segundo dados da consultoria Kantar Worldpanel, cerca de 25 milhões de brasileiras utilizam escova progressiva.
Adolescência
Quase todo o processo de alisamento começa na adolescência. É comum observar nos relatos das mulheres a dureza em enfrentar o racismo (muitas vezes pela primeira vez) ainda tão novas e começando a exercitar a vaidade. Por este motivo, a volta aos cachos pode ser sim considerado além da estética.
Confesso que aos 09 pedi pra minha mãe passar relaxante no cabelo pra ficar parecida com a menina da caixa da Tóin Floft, talvez com aquele cabelo não doeria tanto na hora de pentear. Confesso que aos 13, aos prantos, pedi pra minha mãe passar guanidina, porque os outros meninos das outras séries riam de mim e do meu cabelo, pensei que talvez liso eles parassem de me encher. Confesso que durante toda minha adolescência, de 3 em 3 meses saía com pequenas feridas na cabeça do salão após passar química e todos os domingos acordava cedo pra escovar o cabelo e deixar a franja impecável. / @talysantos_ para o #instamission283
Independente do tom de pele, ter cabelo liso é sinônimo de status e uma forma de diminuir as agressões racistas, seja nas camadas mais elitizadas ou populares. Para se enquadrar, mulheres negras enfrentam décadas de produtos químicos, muitos deles prejudiciais à saúde.
Hashtags e identidade
Das centenas imagens analisadas, as hashtags mostram o empenho das mulheres em conhecerem o próprio cabelo, além de aprender a cuidá-lo. Montagens contando toda a trajetória também foram comuns para elas contarem as histórias que envolvem seus cabelos.
Depois de muitos anos alisando o cabelo decidi assumir meu cabelo exatamente como ele é. Passar pela transição capilar não é só abandonar chapinhas e progressivas, é aceitar sua identidade, descobrir a cada dia que não precisamos e não devemos ficar presos a padrões, é libertar-se #instamission283#afropunk #afrohair #transicaocapilar#crespas #cacheada @brunaboe para o #instamission283
A jornada pra voltar aos cachos pode durar entre 12 a 18 meses e são utilizadas um conjunto de técnicas para eliminar totalmente a química. A mais radical delas chama-se Big Chop que consiste cortar totalmente o cabelo. Como muitas das novas cacheadas já passaram pela transição, a hashtag foi bastante utilizada em fotos postadas anteriormente. É notável o orgulho em mostrar ao mundo toda a transformação em volta do cabelo.
Os anos foram passando, e as mudanças na cabeleira tb. E confesso, hoje a aceitação e a sensação de sentir-se bonita com o cabelo que é meu e suprindo as expectativas que tenho comigo mesma e não dos outros, me dá uma sensação de liberdade e felicidade imensa! da @ocrespodacrespa para o #instamission283
Todos os posts das #transitetes, apelido dado às mulheres que estão retirando o alisamento, têm um apelo bem otimista para as iniciantes que buscam em blogueiras famosas uma inspiração. O empoderamento também está presente no discurso das influenciadoras com maior índice de afinidade entre as participantes da missão.
Além da @natalyneri, embaixadora do desafio, a de maior afinidade com o público foi a blogueira @mariiimorena, vegana que não faz resenha de produtos que utilizam matéria prima animal. Marina é adepta de produtos no e low poo, que não possuem sulfatos ou silicones insolúveis, substâncias que a longo prazo afetam a saúde do cabelo. O tema é uma tendência recorrente na fase final quando muitas optam pelo tratamento natural no dia a dia. Ainda sobre o índice, em seguida está Maraísa Fidelis que recentemente aderiu a técnica em seu cabelo tipo 4C. As hashtags #cabelonatural e #naturalhair utilizadas pelas suas seguidoras fazem uma nítida menção ao processo de aceitação do próprios fios sem excesso de produtos industrializados.
O ranking também deixa explícita a importância da representatividade, tema do estudo Diversidade Étnico-Racial nos canais YouTube das Marcas de Beleza.
O redescobrimento dos cachos é visado pelas empresas de beleza há cerca de 2 anos, porém muitas trabalham especialmente com o processo final, quando quase todo o cabelo está cacheado novamente. Vale ressaltar que a transição é uma tendência do público e não uma imposição mercadológica. Lola Cosméticos, marca mais seguida pelas participantes do #Instamission283, tem uma linha para quem está no meio da transição capilar, se encontra ansiosa e deseja texturizar os fios para cachear a parte alisada. Existem mais oportunidades a serem exploradas neste processo, não necessariamente ligadas ao efeito do cabelo, mas sobre autoestima e aceitação. As duas questões estão conectadas porque, pela primeira vez, elas se sentem à vontade para serem vaidosas por completo.
As montagens de “antes e depois” e mosaicos de fotos são muito comuns, para enfatizar a transformação de auto-apresentação e aceitação devido à reconfiguração dos padrões de beleza aceitos. O exemplo abaixo, da blogueira do canal @soutipo4 simula de forma gráfica o aspecto temporal, criando até mesmo categorias vernaculares de compreensão do fenômeno: Decisão, Transição, Conhecimento, BC (“big chop”) e Crescimento.
Outra questão observada por nós durante a análise foi descobrir o quanto cabelo e beleza estão presentes nas fotos de modo geral entre as usuárias participantes do desafio. Através da extração de 3375 fotografias (as últimas 25 de cada uma das 135 participantes únicas), geramos a rede de hashtags abaixo. Cada agrupamento está baseado em algoritmos de clustering de análise de redes, que permite descobrir padrões de proximidade através da co-presença das hashtags. Dois dos agrupamentos de hashtags estão bem próximos: as hashtags sobre beleza, transição capilar e cabelo estão próximas das hashtags sobre empoderamento, identidade negra e representatividade. Esta proximidade é resultado do uso de hashtags como “ancestralidade” e “representatividade” em fotos de cabelo e transição. É uma indicação do papel deste fenômeno enquanto posicionamento político.
O fenômeno das mobilizações e apoio digital online sobre transição capilar é apenas um dos muitos que surgem do uso criativo das mídias sociais para contornar problemas através da agregação de interesses. As plataformas digitais de comunicação tornam-se espaço de luta e representatividade associadas também a comportamentos de beleza e auto-estima entre pessoas que não necessariamente estão em co-presença.