Por Alexandre Arns Gonzales¹

Esse texto faz parte de uma série de estudos sobre Integridade Eleitoral & Mídias Sociais que foi escrita por Alexandre Arns, Doutorando Bolsista da CAPES no Instituto de Ciência Política (IPOL) da Universidade de Brasília e integrante do grupo de pesquisa Repensando as Relações Estados e Sociedade (Resocie). Ao longo das semanas vamos trazer insights e resumos de cases selecionados para complementar os seus aprendizados. E o primeiro estudo será sobre o Relatório Final sobre Desinformação e “notícias fraudulentas”, publicado em 18 de Fevereiro de 2019.
Ele consiste em um trabalho de investigação conduzido pelo Comitê Digital, Cultura, Mídia e Esporte do Parlamento do Reino Unido, por 18 meses em torno de práticas voltadas a influenciar e interferir nas eleições políticas, tanto no Reino Unido quanto em outros países no mundo. Estas práticas, segundo o Relatório, operaram a partir do acesso, inadvertido, de dados pessoais de milhões de usuários e não usuários dos serviços de mídia do Facebook, com intuito de “causar disrupção e confusão”². A investigação desvela a dinâmica que a rede social adotou e, possivelmente, ainda adota, para controlar o mercado de desenvolvimento de novos serviços e produtos, a partir de diferentes graus de acesso aos dados de seus usuários.
O episódio que motivou a investigação foram as denúncias envolvendo a Cambridge Analytica por um de seus funcionários, em Março de 2018³. Contextualizando brevemente as denúncias, a Cambridge Analytica prestou serviços de consultoria política às campanhas de saída do Reino Unido da União Europeia e da campanha presidencial do Republicano Donald Trump em 2016. Em razão das vitórias de ambas campanhas, a empresa adquiriu notoriedade e, entre 2016 e 2017, foi convidada a apresentar a sua fórmula de propaganda política. Segundo o Diretor Executivo, Alexander Nix, fórmula baseada em análise de dados comportamentais dos eleitores e categorização das audiências conforme traços psicológicos. Contudo, em 2018, a partir da denúncia de um dos seus funcionários ao The Guardian, a empresa foi acusada e, mais tarde, condenada, pela violação à proteção dos dados dos usuários do Facebook.

IBPAD 2020.10.16

A violação decorre da forma pela qual a Cambridge Analytica acessou as informações dos usuários do Facebook. Em parceria com a Global Science Research (GSR), a Cambridge Analytica desenvolveu o aplicativo denominado “essa é sua vida digital” (this is your digital life) que consistia em um questionário sobre a personalidade dos usuários, acessado através do Facebook. O aplicativo, de propriedade do GSR, coletou, além dos dados gerados pela respostas do questionário, os dados referentes às contas dos usuários que acessaram o questionário-aplicativo, assim como os dados dos contatos destas contas, isto é, dos “amigos”, independentemente deles terem interagido com o “essa é sua vida digital”.
Portanto, a disrupção e violação, segundo o objeto do Relatório Final, dos processos eleitorais que a Cambridge Analytica se envolveu não decorre exatamente das formas de suas campanhas, mas das técnicas de obtenção de dados para construí-las. Formalmente, as violações neste processo foram: i) a obtenção ilegal dos dados que consistiu no GSR acessar os dados de pessoas que não usaram o seu aplicativo, na plataforma do Facebook; ii) no Facebook não ter garantido a proteção destes dados; iii) e no GSR vender esses dados à Cambridge Analytica. Com intuito de compreender e atribuir as devidas responsabilidades de cada uma das partes envolvidas neste processo, a investigação do parlamento britânico acabou relacionando o episódio da Cambridge Analytica e empresas parceiras como desdobramento da política do Facebook de conceder acesso aos dados de seus usuários à empresas de desenvolvedores de serviços e produtos. De pronto, o Relatório assinala que a opacidade da estrutura administrativa do Facebook é proposital e com intuito de ocultar informações que pudessem verificar o conhecimento e a responsabilidade dos diretores da empresa com o grau de acesso dos dados.
Além da convocação de testemunhas das empresas, dentre outros, o Comitê teve acesso a ações na justiça estadunidense que uma outra empresa, a Six4Three moveu contra o Facebook na justiça estadunidense. Segundo os autos do processo obtidos, a Six4Three, empresa de desenvolvedores de aplicações para internet, acusava o Facebook de “usar os dados de seus usuários para persuadir desenvolvedores de aplicações a criar plataformas em seus sistema, prometendo acesso aos dados do usuário, incluindo acesso aos dados dos contatos do usuários” (HC1791, 2019, p.26). Segundo os e-mails entre os diretores do Facebook, essa política visava alcançar o equilíbrio entre, nos termos de uma mensagem de Mark Zuckerberg, “ubiquidade, reciprocidade e lucro” (HC1791, 2019, p.34). A “ubiquidade” se refere a transformar o Facebook na plataforma onde se desenvolve o “universo de todos os aplicativos sociais” (Idem); a “reciprocidade” no sentido dos desenvolvedores acessarem os dados do usuários do Facebook e, em contrapartida, a rede social acessar os dados dos usuários dos desenvolvedores; e o “lucro” é autoexplicativo.
Em síntese, para os trabalhos do Relatório Final, o episódio da Cambridge Analytica foi consequência de uma política deliberada do Facebook de buscar controle sobre uma parte do mercado e a indústria de desenvolvimento de serviços e produtos baseados na internet através da concessão dos dados dos usuários da plataforma. Portanto, segundo o Relatório, a proteção dos dados dos usuários foi deliberadamente violada para viabilizar essa política. Em razão disso, os parlamentares responsáveis deste relatório qualificaram o Facebook e empresas similares, como “gangsters digitais” (HC1791, 2019, p.42), pelo poder sobre o mercado de desenvolvedores e sobre os processos políticos, em razão do acesso que a empresa tem sobre dados pessoais e comportamentais e sua opacidade de como ela opera a proteção e uso destes dados.

[1]     Sobre o  autor – Doutorando Bolsista da CAPES no Instituto de Ciência Política (IPOL) da Universidade de Brasília e integrante do grupo de pesquisa Repensando as Relações Estados e Sociedade (Resocie).
[2]      Original em inglês: “causing disruption and confusion” (p.5)
[3]      O denunciante, Christopher Wylie, explicou aos jornalistas do The Guardian, Carole Cadwalladr e Emma Graham-Harrison como funcionavam as técnicas que a Cambridge Analytica executava para acessar e usar os dados de eleitores estadunidenses e britânicos. Ver em <https://www.theguardian.com/news/2018/mar/17/cambridge-analytica-facebook-influence-us-election>
[4]          No eveno Online Marketing Rockstars, Alexander Nix, da Cambridge Analytica, foi convidado como um dos principais conferencistas no evento, em que realizou a apresentação da metodologia empregada pela empresa na “microssegmentação” das audiências de eleitores. Ver em <https://www.youtube.com/watch?v=6bG5ps5KdDo>.
[5]      Ver parágrafos 118 ao 125, paginas 39 a 40 do relatório.
[6]      Parágrafo 30, na página 14, do Relatório.
[7]          “Facebook used its users’ data to persuade app developers to create platforms on its system, by promising access to users’ data, including access to data of users’ friends” (Parágrafo 78, p.26). Sobre a análise sobre a ação judicial e a política do Facebook ver do parágrafo 77 ao 139 (p.26-42).

---
Para quem quer se aprofundar mais no uso de dados na política, o Ibpad lançou uma Formação completa com quatro cursos incríveis, confira:

Dados & Mapas – Identifique regiões de eleitores leais utilizando bases geolocalizadas
Pesquisas Eleitorais – Para tomar decisões corretas utilizando pesquisas de opinião
Pesquisa Qualitativa – Para entender como os eleitores pensam utilizando grupos focais
Inteligência de Dados em Mídias Sociais – Para quem quer ser relevante nas redes monitorando e analisando dados online